Uma vez eu voltava do banco onde eu havia ido pagar boletos e um vendedor da Boutique do Livro me esperava do lado de fora com cara de assustado. “Tem um sujeito descalço lá no 2° andar, sentado no chão escutando CDs e cantando na maior altura!” Eu já estava escutando da rua. O homem cantava a plenos pulmões um canto gregoriano. Fiquei imaginando quem seria a figura. Livrarias são espaços livres, libertários e atraem pessoas idem. Pensava em dois ou três possíveis clientes. (Vê-se pelo até aqui exposto que a história passou-se há algumas décadas: pagava-se boletos nas filas de banco e ouvíamos cds). Subi a escada para o 2° andar da livraria de dois em dois degraus carregando os boletos e uns envelopes para depósito de cheques e dei de cara com o cantor. Ao me ver subindo a escada aos pulos, o homem se levantou sorrindo, abriu os braços e por baixo do bigode espesso falou com sua voz inconfundível: “você é o dono? Parabéns pela linda livraria!” Era o Belchior. Iria fazer um show na cidade naquela noite e estava aproveitando a tarde livre. Passava pelas prateleiras elogiando um livro ou outro, recomendando esse ou aquele autor. Recitou dois ou três poemas do Gregório de Matos também. Falava e declamava, se deliciando com a livraria. Sentiu falta de autores nordestinos. Recomendou alguns. Eu ia atrás, mal ouvindo o que ele falava, encantado com aquela presença luminosa. Falei que eu era fã e que iria ao show na praça, ele desconversou. Queria falar dos livros e dos CDs de Canto Gregoriano. Eu queria mostrar pra todo mundo que o Belchior estava na livraria, mas não entrava ninguém na loja. Conversamos por alguns minutos… ele conversou. Eu ouvia, mudo. Escolheu alguns CDs, pagou e despediu-se. Eu queria um autógrafo, mas não pedi. Fiquei sem jeito. Na saída, ele viu um livro sobre a Terapia Real. Disse que estava bem interessado no assunto e que começara a praticar. Sugeriu que eu praticasse também. Dispensei. Ele riu alto e foi-se embora carregando a sacola da livraria. No outro dia levei um CD do Belchior pra apresentar pro jovem vendedor que trabalhava comigo. Ouvimos apenas esse disco por uns bons dias na Boutique do livro.